Nunca havia acontecido comigo. Até aquela manhã de verão em Berlim. Em um café bem simpático de Kreuzberg, eu pedi um daqueles pratos matinais bem típicos: presunto, embutidos, pão… e, claro, ovos.
O ovo chegou com a gema dura. Eu não havia feito nenhuma recomendação quanto ao ponto. Chamei o garçom.
“Você pode pedir para cozinharem outro ovo para mim, desta vez com a gema mole? Eu pago o ovo extra.”
“Desculpe, não posso.”
“Warum nicht?”, perguntei, já um bocadinho exaltado.
“Porque somos proibidos de servir ovos com gema mole.”
Mais tarde, descobri que o ovo com gema mole é um fugitivo clandestino fora-da-lei em um monte de lugares. Inclusive na cidade onde eu moro: São Paulo. Em todo o território paulista, aliás. Uma portaria de 2013 do Centro de Vigilância Sanitária estabelece o seguinte para estabelecimentos do setor da alimentação: “São proibidas as preparações onde os ovos permaneçam crus ou mal cozidos. Os ovos cozidos devem ser fervidos por sete minutos e os ovos fritos devem apresentar a gema dura.”
Os ovos fritos devem apresentar a gema dura… vade retro! Ovos de gema mole são uma iguaria; ovos de gema dura são intragáveis.
A razão da proibição é a salmonelose, doença causada por uma bactéria que vive no trato digestivo dos frangos. Caso você não saiba, o ovo sai pelo mesmo buraquinho de onde sai a titica. Ao passar pela cloaca, o ovo se contamina com a salmonela. Como a casca do ovo é porosa, todo ovo tem salmonela. A salmonelose provoca diarreia tão violenta que pode até matar. Crianças, idosos e pessoas debilitadas por algum outro fator são alvos preferenciais. Para liquidar a bactéria, é preciso cozinhar a gema até endurecer. Por isso tantas legislação melando o prazer dos apreciadores de ovos.
Devemos levar a salmonela a sério. Numa empresa em que trabalhei, o restaurante do bandejão pôs no hospital dezenas de funcionários que comeram uma quiche mal assada. Mas devemos também entender a proporção das coisas. Os casos de salmonelose ocorrem, principalmente, em refeições preparadas para muitas pessoas e que ficam expostas ao calor por um período prolongado. Isso faz com que a colônia de bactérias cresça exponencialmente e se torne um risco real.
É o caso de uma maionese que fica ao sol num almoço de casamento. Ou da quiche do bandejão. Já um ovo frito na hora não costuma apresentar uma população bacteriana grande o bastante para causar a doença. Eu passei a vida toda comendo ovo mole e nunca passei mal. E tem outra: as pessoas não reclamam do estado-babá? Deixa o pessoal comer o ovo do jeito que quiser. Eu assumo meus próprios riscos.
Felizmente, até os agentes sanitários sabem que o ovo mole é muito mais gostoso. Os restaurantes em São Paulo servem a gema malpassada sem aparente preocupação com uma blitz. Levar a sério uma lei dessas, só mesmo um alemão.
Fonte: Folha de S.Paulo