Número de caminhões servindo comida de rua na capital paulista vem caindo vertiginosamente
Entre 2014 e 2015, a paisagem urbana de São Paulo era o nirvana do hipsterismo materializado em hambúrgueres gourmets, paletas mexicanas, batatas rústicas, pizzas napolitanas individuais, dadinhos de tapioca. Essas e outras iguarias eram servidas na rua, em caminhões imponentes e decorados, como se saíssem diretamente de um sonho do Brooklin (NY). Era o auge da era dos food trucks.
De lá para cá, esse sonho gastronômico foi minguando até o momento atual, em que quase ninguém sobreviveu ao hype. Segundo a Secretaria de Subprefeituras de São Paulo, na cidade há um total de 596 concessões para comércio de comida na rua na categoria A, para veículo automotor (os food trucks). Mas de 2014 para cá, o número de termos de permissão de uso (TPUs) só cai. Foram concedidos 153 em 2014, 127 em 2015, 119 em 2016, 108 em 2017 e 89 em 2018.
Atualmente, o quadro é ainda mais desanimador. Novas concessões estão suspensas por conta de digitalização/atualização do sistema de emissão e gerenciamento de TPUs.
Entre esses ”últimos dos moicanos” estão Márcio Silva e Adolfo Schaefer. Comandantes de naus que ainda navegam por esses mares revoltos, o Buzina e o Holly Pasta.
A instabilidade do food truck nas ruas
A dupla acabou se tornando porta-voz desse sonho quando passou a apresentar o reality show Food Truck – A Batalha, no canal GNT, uma competição de food trucks pelas ruas da capital paulista, interior de São Paulo e até de cidades em outros estados, como Florianópolis, Recife, Rio de Janeiro e Salvador. O programa durou por 4 temporadas, de 2015 a 2018.
Márcio Silva abriu o Buzina em 2013 junto com seu sócio, o americano de origem cubana Jorge Gonzalez. Ele atribui a decadência à volatilidade do mercado nas ruas.
″O ganha-pão na rua é muito instável. Hoje, sobrevivendo na rua deve ter uns 10. Continuo na rua porque sou burro; porque somos cozinheiros, não somos bons de negócios. Acreditamos em uma filosofia de vida... Eu estou cansado, decepcionado. Mas continuo porque ainda há esperança”, reflete.
Para Adolfo Schaefer, o hype exagerado fomentou a ilusão de quem não estava preparado para a dura realidade das ruas. “No primeiro chamamento, um monte de gente se inscreveu e um monte recebeu a TPU. Foram 56 concedidas!”, recorda-se.
Schaefer conta que no princípio começou uma disputa de dois ou mais veículos pelos consumidores do mesmo local. “Veio o cara da paella, o cara que vendia comida libanesa… Chegavam com uns caminhões gigantes, mas com uma cara que não convencia ninguém”, descreve.
O responsável pelo Holly Pasta diz que sua kombi vendia 20 pratos enquanto notava que seu colega da paella “não vendia nada”. “Ninguém queria ter o trabalho de abrir, não vender nada, fechar e no dia seguinte abrir de novo, não vender nada de novo e fazer o trabalho de formiguinha”, resume.
Outra consequência do hype foi a criação dos festivais e food parks, que brotavam por todos os cantos de São Paulo. “Em dois dias de festival, o cara fazia uma grana que não fazia em uma semana na rua. Aí o que aconteceu? Os caras foram largando mão da TPU. Ficavam produzindo a semana inteira para em um final de semana fazer uns 20 paus em dois dias, coisa que faziam em um mês na rua”, explica Schaefer.
Mas os food parks — moda a que tanto Schaefer quanto Silva se orgulham de nunca ter aderido — não foram efeito apenas do hype. A questão das TPUs foi essencial para esse cenário.
“A subprefeitura de Pinheiros era a única que sabia o que era um food truck. Nas outras, era ‘foo o quê?’. Aí todo mundo correu para Pinheiros e queriam usar os pontos que eu, o Adolfo e outros poucos caras fizemos quando tínhamos que trabalhar sem licença, o que era uma loucura. Eu gostaria de um ponto na área da subprefeitura da Sé, mas lá não rolou nada. Mas eu tenho orgulho de nunca precisar de food park. Parque não é lugar de truck. Lugar de truck é na rua”, conta Silva.
Publicitário de formação, Márcio Silva começou na cozinha onde esse movimento surgiu — em Nova York. Lá ele conheceu seu futuro sócio no que viria a se tornar o primeiro food truck do Brasil, o Buzina. E diferentemente da visão de seu amigo Adolfo Schaefer, o culpado pela situação dos food trucks na capital paulista é uma só: a política.
“Eu culpo os governantes”, esbraveja Silva, que completa: “A Lei dos Food Trucks é capenga, deficiente. Não havia um entendimento de onde estacionar. Essa lei não nos deu as ferramentas necessárias para se ter algo minimamente organizado. Se tivessem feito da forma correta, daria certo. Se dá certo em Manhattan [uma das ilhas que formam Nova York], que é bastante apertada, por que não daria certo aqui?”, questiona.
A lei da Discórdia
A lei a que Márcio Silva se refere é a lei municipal 15.947/2013. Sancionada pelo então prefeito Fernando Haddad (PT) no final de 2015, ela foi um projeto dos então vereadores Andrea Matarazzo (PSD), na época no PSDB; Arselino Tatto (PT), Floriano Pesaro (PSDB), Marco Aurélio Cunha (PSD) e Ricardo Nunes (MDB).
Hoje a legislação é criticada até por um de seus autores, o hoje pré-candidato à prefeitura de São Paulo Andrea Matarazzo, devido às emendas feitas. Em entrevista ao HuffPost, ele disse que o projeto original previa que a decisão sobre a localização dos food trucks seria dos conselhos das subprefeituras, que seriam formados por: associação comercial, para evitar conflito de interesse do food truck; associações de bairro, para fiscalizar os locais e a qualidade; representantes de vigilância em saúde (COVISA); e membros da CET, para comunicar se o local escolhido pode parar ou não em função do trânsito. O dono do empreendimento levaria sua proposta de local ao conselho, que faria a análise.
“Tiraram esse conselho, e essa decisão ficou na mão do subprefeito. Então, era a Prefeitura que definia onde esse food truck podia ficar. Quem sabe onde vende é o dono do food truck, não o subprefeito. Distorcer a lei dando poder de arbítrio total ao subprefeito foi uma das coisas que matou a possibilidade de instalação dos food trucks como deveria ser”, explica Matarazzo. “Quem tem que definir quem tem que fiscalizar é a sociedade e os food trucks. A prefeitura só faz essa análise da qualidade pelo COVISA e de estacionamento do food truck pela CET.”
O romântico e o pragmático
Formado em coisa nenhuma”, como ele mesmo se define, Adolfo Schaefer montou o Holly Pasta em 2014 junto com alguns sócios. Seu primeiro trabalho com cozinha foi aos 17 anos, em um restaurante. De lá para cá, se arriscou vendendo hot dog, teve uma lanchonete em lan house e montou um serviço de buffet, até que resolveu voltar às ruas com uma kombi que customizou paras realizar seu sonho.
“Eu, desde o começo acreditei que a gente ia conseguir fazer a nossa imagem na rua, direto com o público. Para as pessoas lembrarem da gente pela gente e não do food truck de macarrão que tava na loja tal ou no food park tal. Desde o primeiro dia eu tinha comigo que a gente não ia depender da garagem de ninguém”, conta Schaefer, que já teve loja física, mas que encerrou suas atividades por conta de problemas com o sócio no empreendimento.
Já para Silva, a loja física é o caminho. Não que tenha perdido o amor pela rua, mas a luta no asfalto paulistano é dura demais. “A margem [de lucro] de um food truck na rua é muito baixa, e São Paulo não é para principiantes. A rua é um tesão, mas o Jorge [o sócio dele] tem dois filhos e eu, três. Estou mais focado em qualidade de vida agora”, conclui.
Fonte: HuffPost Brasil