Guia premia os melhores restaurantes de alta gastronomia no mundo. Para conseguir participar, o empreendedor precisa superar diversos desafios
Quanto mais talentoso um chef de cozinha é, mais exigente fica. Esse é o caso do francês Paul Bocuse. Pioneiro, o chef, falecido no ano passado, foi um dos responsáveis pelo surgimento da “nouvelle cuisine” (ou "nova cozinha"), movimento gastronômico que preza por pratos mais leves e sofisticados em oposição à culinária clássica. E este vaidoso profissional tinha apenas uma referência para comparar a sua qualidade com a dos concorrentes. “O Michelin é o único guia que importa”, disse na década de 1960. A publicação, realizada anualmente, premia restaurantes da chamada “alta gastronomia” de diversas partes do mundo.
Para isso, é usada uma classificação que vai de uma a três estrelas. Parece simples, mas quem quiser participar precisa estar preparado. Os critérios são rigorosos – e guardados com extremo sigilo.
O Michelin é publicado em duas versões: vermelha e verde. Os guias vermelhos avaliam os melhores restaurantes de países inteiros, sendo que a maioria está concentrada na Europa e Ásia. Já os guias verdes são voltados para regiões específicas. No Brasil, o anuário abrange as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro.
Mas vamos com calma. É importante mencionar que nem todo estabelecimento é elegível para a publicação. Os restaurantes que fazem parte do guia seguem um modelo de negócios mais tradicional, apostando em ambientes e atendimento mais formais. “Existem ótimos restaurantes em São Paulo que não estão no Michelin”, diz Luiz Filipe Souza, proprietário do Evvai.
Como se preparar?
Inaugurado em 2017, o Evvai conquistou sua primeira estrela na edição de 2019, publicada em maio. Segundo Souza, esse destaque foi consequência de muito planejamento. O empreendedor conta que, nos primeiros anos de negócio, foi necessário tomar uma importante decisão: criar um restaurante mais casual ou mirar em uma estrela Michelin. Ele escolheu a segunda opção.
Mas como alcançar esse objetivo sem conhecer os critérios necessários?
É aí que entra a importância da pesquisa. Na hora de modelar o seu negócio, Souza conta que levou em conta três fatores: qualidade da comida, atendimento e ambiente. Mas alinhar estes pontos com a formalidade necessária para estar no guia não foi nada fácil – e tampouco barato. “Eu tive que gastar mais, remunerar melhor meus funcionários e projetar melhor meu ambiente.”
Outro ponto que precisa ser considerado é a rentabilidade do negócio. Muitas vezes, é difícil conciliar a qualidade com o volume de clientes. Nessas situações, um dos dois fatores acaba sendo sacrificado. E o negócio do chef e apresentador Felipe Bronze é um exemplo disto.
Duas estrelas
Bronze é fundador do Oro, um dos três restaurantes brasileiros que conquistaram duas estrelas no Guia Michelin. Os outros dois foram o D.O.M, do chef Alex Atala, e o Tuju, de Ivan Ralston. Para manter a exclusividade do espaço, o Oro tem capacidade para apenas 35 pessoas. A rotatividade das mesas tampouco é grande. “No máximo, eu atendo 48 pessoas por noite.”
Neste cenário, tudo precisa ser colocado na ponta do lápis pelo empreendedor. Um exemplo das medidas de Bronze foi abrir mão das mesas pequenas, que dão a possibilidade de acomodar mais clientes no salão, e escolher uma opção mais espaçosa, de 85 centímetros. “Assim, nossos clientes conseguem ter mais espaço para comer, ficando mais confortáveis.”
Muitas vezes, esse tipo de sacrifício é necessário para manter o estabelecimento no padrão necessário para o guia. Mas o empreendedor que adotar este modelo precisa tomar um série de cuidados extras. É preciso considerar o espaço que o salão dispõe, o tempo médio que um cliente irá permanecer no local e os custos que o estabelecimento terá nas suas operações. Para manter o fluxo de caixa balanceado, todos estes fatores precisam refletir no preço do restaurante, que deve ser o suficiente para manter o negócio lucrativo. O Oro, por exemplo, conta com um tíquete médio de R$ 550.
Vá com calma
Apesar da importância que tal premiação pode ter para determinados negócios, os chefs recomendam cautela. “O guia precisa ser uma consequência da qualidade de um restaurante, não o motivo dela”, diz Bronze. Segundo o empreendedor, a obsessão pelas estrelas pode fazer mal para o negócio – e à saúde do chef. Esse foi o caso do francês Bernard Loiseau, que desenvolveu depressão ao descobrir que seu restaurante perderia uma estrela no Michelin. Ele se suicidou em fevereiro de 2003.
Outro exemplo é o de Sébastien Bras, que pediu que seu estabelecimento, localizado no sul da França, fosse retirado do anuário em 2017. Segundo ele, participar do guia era uma pressão muito grande e estava atrapalhando tanto a sua saúde quanto a de seus funcionários. O ideal é que as estrelas sejam um resultado de um modelo de negócios bem estruturado. De acordo com Ivan Ralston, proprietário do Tuju, esse foi seu caso. Ele conta que o restaurante nunca nasceu com o propósito de ser destaque no guia. “Foi apenas um caminho que a gente acabou seguindo de forma natural.” A primeira estrela veio quase como uma surpresa, segundo ele, em 2015.
Menu degustação?
Inaugurado em 2013, em São Paulo, o Tuju define a identidade dos seus pratos como “completamente paulistana”. O seu menu, que funciona apenas no modelo degustação, muda de acordo com as estações do ano e dá ênfase a ingredientes e sabores tipicamente brasileiros. Tal modelo também é compartilhado pelo Oro e pelo Evvai – e existe um bom motivo para isso. Segundo Ivan Ralston, um menu degustação permite que o cliente tenha uma experiência gastronômica mais completa, transmitindo melhor o conceito do cardápio.
No caso do Tuju, o menu “à la carte” precisou ser abandonado na intenção de conseguir a segunda estrela. Como consequência, a quantidade de clientes atendidos também caiu. Mas Ralston não se arrepende da escolha. “Na degustação, o cliente come melhor.” Esse tipo de menu é predominante no Guia Michelin. Mas, de acordo com Souza, isso não significa que adotar este modelo é um critério para se entrar no guia. Até porque, a publicação também premia restaurantes focados no à la carte. O motivo para esta dominância seria apenas a predileção dos chefs. “É nesse menu que a cozinha consegue demonstrar seu maior potencial”, diz Ralston.
Como montar um menu?
Originalidade e criatividade. Essas são as dicas de Felipe Bronze para a elaboração dos pratos. O Oro reformula seu menu periodicamente, coisa que, segundo o empreendedor, o dá mais liberdade artística e mantém o cliente interessado no estabelecimento. Apesar disso, o chef cita algumas características comuns de suas criações. Dentre elas, está o equilíbrio entre os gosto de sal, acidez e amargor. A acidez, em específico, é um recurso que o empreendedor gosta de empregar com regularidade. “É meu grande lance na comida. É ela que faz a boca salivar.”
Fonte: Pequenas Empresas Grandes Negócios