Pedro Hermeto diz que a Cidade Maravilhosa emergirá com força e brilho no novo tempo, porque é o cenário urbano mais ao ar livre do mundo, síntese da história do Brasil e o mais variado espetáculo da natureza. Ele é advogado, com mestrado na Universidade de Paris, sócio-administrador do Território Aprazível, localizado em Santa Teresa, e presidente da Abrasel no Rio de Janeiro.
O prefeito Eduardo Paes já antecipou que será articulado um calendário de eventos em que se aproveite ao máximo o Rio ao ar livre. É, como ele já nomeou, o calendário do “Rio, a celebração da vida”.
Isso é genial, brilhante. Estamos vivendo o melhor momento para se explorar ao máximo o incomparável cenário do Rio, que é, mundialmente, a cidade mais ao ar livre, sempre arejada por um diversificado espetáculo da natureza. O Rio tem de se projetar para os cariocas, para o Brasil e o mundo, precisamente com este foco. A pandemia acabou iluminando os atributos da Cidade Maravilhosa. Isso porque, agora, com muita força, entramos na era da natureza, do arejamento, da vida saudável ao ar livre, de um entrelaçamento ainda maior do homem com o ecossistema.
O prefeito declarou, em entrevista aos jornais O Globo e Extra, que é preciso se construir uma nova narrativa para o Rio, como a cidade da natureza, da “celebração da vida”.
A alusão à narrativa é muito inteligente. Tenho conversado sobre isso com a Cris Beltrão (Cristiana Beltrão, empresária e pesquisadora da gastronomia; integrante do Conselho da Cidade do Rio de Janeiro; ela também é membro, no Brasil, do Enrich, uma rede europeia de centros e polos de investigação e inovação). A Cris reiteradamente defende o ponto de vista de que o Rio tem de trabalhar intensamente com um único foco, que é o da sustentabilidade.
E isso cabe muito bem na mensagem “Rio, a celebração da vida”, porque ressalta o meio ambiente, o arejamento. É interessante o que ela diz. Seja qual for o segmento que se quer abordar, nessa campanha, é essencial que se esteja focado na sustentabilidade. Se é moda, tem de ser moda sustentável.
É cinema? Então, é cinema sustentável. Turismo? Também só se for sustentável. São projetos imobiliários? Projetos necessariamente sustentáveis. Ela afirma que se ficar bem nítido que os esforços coletivos dos cariocas miram esse objetivo, certamente o Rio atrairá turistas e investidores para todas as áreas, a começar pelo setor de bares restaurantes.
A Cris diz, ainda, que, conforme levantamentos dessa rede europeia de investigação e inovação, 48% dos turistas americanos estão dispostos a viajar para lugares que autenticamente expressem e pratiquem esse propósito.
O cardápio histórico e ambiental do Rio é extenso.
Verdade. O Rio é a história do Brasil e o espetá- culo da natureza. A cidade é o cenário dos edifícios e espaços históricos, como a Biblioteca Nacional, o Paço Imperial, o Theatro Municipal, o Jardim Botânico, criado por Dom João VI. No mesmo foco estão as ramificações da Serra do Mar e da Mata Atlântica, a Baía de Guanabara, a Floresta da Tijuca, a maior floresta urbana do mundo, os morros da Urca, do Corcovado, o Dois Irmãos.
Há extenso número de mirantes e trilhas para caminhadas, todas sinalizadas. E é o Rio de céu, sol e mar. Temos o Carnaval a céu aberto, o Rock in Rio, o surf, os esportes náuticos, o voo livre, o Maracanã, a travessia das barcas Rio-Niterói, o ecoturismo, com a observação de pássaros e das espécies vegetais nativas.
Roberto Medina, idealizador e empresário do Rock in Rio, diz que o espetáculo do Rio está sem- pre montado; “só é preciso acender a luz e botar a bilheteria na porta”.
Certíssimo. Da minha casa (no bairro de Santa Teresa, contíguo ao Centro da cidade), posso ir andando até o Cristo Redentor (no morro do Corco- vado, cuja altitude é 700 metros acima do nível do mar). É esta a narrativa. Temos um colar de possibilidades do turismo de aventura em diversas áreas da cidade. Nunca soube de que exista no mundo uma metrópole assim. Daqui de Santa Teresa, pega-se um táxi até o sopé da Pedra da Gávea.
Lá, faz-se uma caminhada de três horas e meia, até o pico, que fica a mil metros de altura. Há um trecho em que se precisa de uma corda para subir. Ou seja: o turismo de aventura está completamente incrustado na cidade. Depois dessa escalada, tem-se o direito de ir a um bar, tomando uma cerveja bem gelada.
O arquiteto Jaime Lerner escreveu em seu livro “Acupuntura Urbana” que um balcão de boteco do Rio tem a informalidade, a cumplicidade e o sentimento da celebração.
Sem dúvida. O boteco expressa o espírito carioca da celebração. A mensagem do prefeito Eduardo Paes é a de a cidade passar a ser claramente identificada como “Rio, a celebração da vida”. Aí o bar é inevitável. São os bares e os restaurantes os polos das interações humanas.
Eles são o palco da mistura de pessoas de diferentes perfis etários, socioeconômicos, raciais e de gênero. Bares e restaurantes fazem, em qualquer lugar do mundo, com que esse congraçamento se propague, criando-se o ânimo da cidade viva, seja em Paris, Nova York ou Melbourne, na Austrália.
Os bares e restaurantes estão associados a cadeiras nas calçadas, sob toldos. As cidades mais admiradas pelos moradores e turistas são as caminháveis, com calçadas largas, funcionando como locais de passagem e de permanência. A cidade torna-se o solo fértil para o surgimento de mais bares e restaurantes. Muitos desses novos estabelecimentos são empreendidos por ex-funcionários de outros bares e restaurantes. Isso é muito comum no setor.
Como é que se dá esse fenômeno de funcioná- rios largarem o emprego do bar e restaurante para abrir seus próprios estabelecimentos?
Só do meu restaurante, desde foi fundado, há mais de vinte anos, saíram uns 15 profissionais, que resolveram montar seus próprios negócios, seja um barzinho, um quiosque ou uma padaria. Isso é por que cada restaurante naturalmente acaba funcionando como se fosse uma espécie de escola gerencial e gastronômica. A forma como se dá o funcionamento do dia a dia do estabelecimento acaba capacitando os funcionários, como se fosse uma escola técnica.
Há, dentro dos bares e restaurantes, uma permanente interação e transmissão do saber, que é passado de funcionário para funcionário, de uma área para outra. O encarregado da recepção comunica-se com o garçom, que, por sua vez, se comunica com o chefe da cozinha, e assim por diante.
Toda essa interação ocorre com total respeito às hierarquias, à disciplina corporativa. O trabalho em equipe flui de modo espontâneo. A comunicação interna reflete o clima de celebração inerente ao ambiente do bar ou restaurante. Na alma de um bar ou restaurante está a harmonia coletiva, a coesão social.
Na maioria dos bares e restaurantes, os empregados se comunicam de modo descontraído com os clientes, e vice-versa.
Isso mesmo. O garçom conversa com os clientes de todas as classes sociais, seja com o freguês que é balconista de uma loja, ou que é um rico empresário. O diálogo ocorre em todas as direções. A palavra celebração combina muito com os bares e restaurantes. A atmosfera do bar é, por si só, a de democrática celebração. E isso, no Rio, é ainda mais comum do que em qualquer outra cidade. Faz parte da cultura carioca, desde os tempos em que Rui Barbosa frequentava a Confeitaria Colombo, no final dos anos 1800 e início dos anos 1900.
Ao atender as mesas de uma clientela tão diversificada, o garçom acaba se tornando uma figura pública.
Com os garçons em primeiro lugar, acontece essa projeção. Mas essa relativa popularização da figura do empregado ocorre, também, em menor escala, com os demais funcionários, seja com o chefe da fila ou com o RH (o encarregado de recursos humanos). Não há, em um bar ou restaurante, uma área inteiramente estanque. O negócio funciona com revezamento de posições, porque, em dado momento, um preenche o espaço deixado aberto pelo outro. A dinâmica é a de um carrossel, de um jogo de basquete. Isso faz com que os empregados proativos acabem dominando o negócio como um todo, e, quando menos se espera, um deles resolve montar seu próprio empreendimento. Foi assim que já perdemos excelentes empregados.
"Jamais se vê um trabalhador da construção civil largando a obra em que está trabalhando para abrir a sua própria empresa de construção. No setor de bares e diferentes é muito diferente. Acho que pelo menos 15 funcionários já saíram do Aprazível para montar seu próprio negócio. Isso é mais ou menos comum no setor. Cada barzinho, cafeteria e lanchonete que surge é mais uma porta aberta ao primeiro emprego dos jovens de baixa escolaridade. O setor é irradiador de vida. Os bares e restaurantes tornam vivas as ruas, aumentando a segurança do entorno.”
E qual é, neste caso em que o empregado diz que vai sair para montar o próprio negócio, a sua reação?
No início, quando me juntei à minha mãe (Ana Castilho) na administração do Aprazível, e um dos empregados pediu para ser demitido, porque queria montar seu próprio estabelecimento, me veio um pouco de decepção por perder aquele profissional. E minha mãe, cheia de brilho nos olhos, com muita sabedoria me disse: “O passarinho que quer voar tem de voar”. Depois, ao se despedir desse empregado, ela o animou: “Vai lá, vai empreender. Você já sabe como. Boa sorte, é o que realmente lhe desejo”.
Estabelece-se um círculo virtuoso de causas e efeitos.
Exatamente. Abre-se um bar ou restaurante, emprega-se o jovem que não encontrava lugar para trabalhar; esse jovem é capacitado nas atividades diárias do bar ou restaurante, anima-se a abrir seu empreendimento, o novo estabelecimento gera mais segurança nas ruas, e mais estabelecimentos são atraídos para essa rua, e assim vai se criando uma cidade viva.
Na maioria dos demais setores da economia é difícil um empregado, com pouco capital, deixar o emprego para abrir uma empresa.
De fato. Jamais se vê, por exemplo, um trabalhador da construção civil largando a obra em que está trabalhando para abrir a sua própria empresa de construção. Como eu já havia dito, isso é frequente no nosso setor, que, desta forma, vai reoxigenando a economia do país. Além do mais, cada barzinho, cafeteria e lanchonete que surge é mais uma porta aberta ao primeiro emprego dos jovens de baixa escolaridade. Esses jovens, em sua maioria, vêm de famílias de baixa renda.
Esse processo tem uma dinâmica própria, em que uma coisa leva à outra.
A Cristiane Beltrão já escreveu artigo para a Veja Rio, observando que as cidades não surgem de desenhos imaginários, criados entre quatro paredes. As cidades se desenvolvem organicamente. Um bar e restaurante fazem nascer na sua vizinhança uma padaria. Depois vem uma livraria, depois vem um teatro, depois uma floricultura, e assim por diante. Por isso, o setor da alimentação fora do lar, representado pela Abrasel, é peça fundamental na equação do “Rio, a celebração da vida”. Os bares e restau- rantes são indutores de vida, porque geram movimento de gente.
São indutores de negócios, porque fazem surgir na rua outras atividades de comércio e serviços, seja uma padaria, uma livraria, um hotel, um “airbnb”. O setor de bares e restaurantes talvez seja o único entre todos esses setores que têm essa formidável capacidade de, a partir do primeiro emprego a jovens sem qualquer qualificação, se tornar um viveiro de empreendedores. Este é um dos pré- requisitos da cidade viva, socioeconomicamente diversificada e acolhedora.
É preciso que, nos planos diretores de desenvolvimento urbano das cidades, conduzidos pelas prefeituras, sejam priorizadas as ruas com a função mista de comércio e moradia.
Fazer com que o Rio se projete, cada vez mais, como uma cidade mesclada nos seus usos e na sua diversidade socioeconômica, com menos áreas exclusivamente residenciais, é um dos reiterados propósitos da atual administração municipal do prefeito Eduardo Paes. Esta é uma causa sempre defendida pela Abrasel. O setor da alimentação fora do lar é peça fundamental na equação do “Rio, a celebração da vida”, porque é irradiador de vida e irradiador da cidade mais fraterna e mais segura.
Este é um ponto muito sensível no Rio; a segurança pública.
É uma falsa a imagem de que o Rio seja uma cidade violenta. Isso vem exatamente de algo que, de modo nefasto, uma parcela da população repete, e é amplificado pela emissora local de televisão, líder em audiência nacional. Em qualquer cidade do mundo, nos locais ermos e tomados pela pobreza, há menos segurança. O mesmo acontece no Rio, mas o que ocorre aqui acaba sendo exageradamente dimensionado. Onde há as luzes da cidade, movimento de gente, naturalmente há segurança.
Há dados sobre isso, no Rio de Janeiro?
O jornalista Cláudio Magnavita, dono do Correio da Manhã, escreveu em sua coluna que o percentual de visitantes vítimas de assaltos ou de furtos é de 0,31% do número de estrangeiros que visitaram o Estado, que são mais de 1,2 milhão, segundo dados do Ministério do Turismo. O Rio, como escreveu ele, fica em pé de igualdade com várias cidades da Europa que recebem vários milhões de turistas por ano. Na medida em que haja mais portas do comércio aberto às calçadas, com circulação de gente na rua, a segurança melhora. Isso aconteceu com a área de Times Square, em Nova York, depois da revitalização e pedestrianização, promovidas na gestão do prefeito Michael Bloomberg, há pouco mais de dez anos.
Uma Nova York em crise encontrou a sua era de prosperidade que se estende até hoje, inclusive resistindo bem aos danos causados pela pandemia.
Os nova-iorquinos passaram a usufruir mais da cidade, e mais turistas começaram a desembarcar no aeroporto John Kennedy. A motivação de a população residente sair às ruas conjuntamente com o aumento do fluxo de turistas foi uma valiosa lição de transformação urbanística que Nova York deu ao mundo. Outra lição de Nova York, no auge da pandemia, foi a extensão do funcionamento dos bares às calçadas e às faixas de estacionamento de carros, nas quais foram colocadas mesas. Isso é algo que já, há muito tempo, se fazia nas principais cidades turísticas da Europa. É o que temos de fazer no “Rio, a celebração da vida”.