
Em uma pesquisa internacional realizada pelo Planetizin, de Los Angeles, Jane Jacobs e Jaime Lerner foram nomeados como os dois mais influentes urbanistas de todos os tempos. O site é anualmente visitado por cerca de 1,5 milhão internautas que atuam nas diversas áreas profissionais relacionadas ao planejamento urbano. No início de abril de 2018, foram divulgados os 100 indicados pelos eleitores. Por ordem decrescente, no pódio dos cinco primeiros colocados também incluem-se o americano Frederick Law Olmsted, o dinamarquês Jan Gehl, e o também americano Andrés Duany.
Ela, jornalista e ativista, escreveu o mais poderoso livro sobre planejamento urbano do mundo, lançado em 1961: “The Death and Life of Great American Cities”, que no Brasil foi publicado, no ano 2000, com o título “Morte e Vida de Grandes Cidades”. Seu nome de batismo: Jane Isabel Butzner. Casou-se em 1944 com o arquiteto americano Robert Hyde Jacobs Jr. Ambos filhos de famílias protestantes. Nascida em Scranton, na Pensilvânia, mudou-se para Nova York em 1935, aos 19 anos de idade. Faleceu aos 89 anos, em Toronto, no Canadá. Com a sua obra, reduziu-se o ímpeto global do planejamento urbano de cidades separadas por zonas específicas de moradia, trabalho, comércio, lazer e serviços públicos, conectadas entre si por sistemas rodoviários de viadutos, túneis e vias expressas. A onda das cidades “funcionais”, segregadas por funções e desenhadas para a escala dos automóveis, redundou - entre outros exemplos mundiais – na construção de Brasília. Jane Jacobs mostrou aos urbanistas que as cidades formaram-se e desenvolveram-se livremente, ao longo da história. A experimentação aproximava e mesclava as vizinhanças com moradia, trabalho, comércio, lazer e serviços públicos. O planejamento urbano, segundo ela, deve fortalecer e dar ordenamento a essa ancestral vocação agregadora dos núcleos urbanos, tanto nas funções (usos) quanto na diversidade socioeconômica, portanto no sentido contrário ao apregoado pelos formuladores das cidades monofuncionais e monoclassistas.
Ele, arquiteto e urbanista, colocou em prática princípios apregoados por Jane Jacobs em três mandatos como prefeito de Curitiba, como o da mescla de funções e de vizinhanças socioeconomicamente diversificadas. Tornou-se, mundialmente, o prefeito que realizou o maior conjunto de ações voltadas à qualificação urbana, sobretudo nestas vertentes: transportes públicos, vias exclusivas para pedestre, separação de lixo reciclável, criação de bosques e parques. Quando empossado pela primeira vez, em 1971, aos 34 anos de idade, havia na cidade um só parque, com área de 70 mil metros quadrados. Ao final de sua última gestão, em 1992, Curitiba dispunha de 31 parques, totalizando 19 milhões de metros quadrados. Com sua equipe, inventou e começou a implantar, em 1974, o sistema integrado do BRT (Bus Rapid Transit), adotado em 186 cidades no mundo. Em 1990, conquistou o prêmio máximo do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente com o programa domiciliar de separação e coleta do lixo orgânico e reciclável, com coleta porta a porta. Em 17 de dezembro de 2018, Lerner completou 82 anos de idade. Ele realiza projetos em cidades de vários países. Participa de seminários no Brasil e no exterior. No dia 14 de junho de 2018, encerrou o V Congresso de Arquitetura e Sociedade, em Pamplona, na Espanha, tendo analisado, com o urbanista dinamarquês Jan Gehl, o futuro da cidade sustentável na Europa e nas Américas.
As calçadas de Jane Jacobs
Com açougue, farmácia, cafeteria, banca de frutas, restaurantes e bares, entre eles o renomado White Horse, frequentado pelo poeta Dylan Thomas, a vizinhança do Village é narrada no livro Morte e Vida de Grandes Cidades. A cidade torna-se bela e aprazível quando nela a vida está em movimento, propiciando-se a coreografia do cotidiano balé nas calçadas.
“É uma coisa que todos já sabem: uma rua movimentada consegue garantir a segurança; uma rua deserta, não”. “O requisito básico da vigilância é um número substancial de estabelecimentos e outros locais públicos dispostos ao longo das calçadas do distrito; deve haver entre eles, sobretudo, estabelecimentos e espaços públicos que sejam utilizados de noite. Lojas, bares e restaurantes, os exemplos principais, atuam de forma bem variada e complexa para aumentar a segurança nas calçadas”. “Sob a aparente desordem da cidade tradicional, existe, nos lugares em que ela funciona a contento, uma ordem surpreendente que garante a manutenção da segurança e da liberdade. É uma ordem complexa. Sua essência é a complexidade do uso das calçadas, que traz consigo uma sucessão permanente de olhos”. “Temos muita sorte de existir em nossa rua um bar frequentado por moradores e outro, virando a esquina, além de um bar famoso que atrai uma freguesia constante dos bairros vizinhos e até fora da cidade. É ele famoso porque o poeta Dylan Thomas costuma frequentá-lo e o citou em sua obra. Esse bar, aliás, tem dois turnos distintos. De manhã e no começo da tarde é, como sempre foi, um ponto de encontro dos estivadores da antiga colônia irlandesa e de outros trabalhadores da região.
Mas, a partir do meio da tarde, o bar ganha uma vida diferente, que faz lembrar uma mistura de bate-papo de universitários, regado a cerveja com coquetel literário, e isso até o começo da madrugada. Numa noite fria de inverno, quando se passa pelo White Horse e as portas se abrem, somos atingidos por um ambiente acolhedor. O entra e sai desse bar contribui em muito para manter a nossa rua razoavelmente movimentada até as três da manhã, e não há perigo em voltar tarde para casa”. “Os estivadores que estão de folga reúnem-se no White Horse, no Ideal ou no International para beber e conversar. Os executivos e os comerciários das indústrias próximas, logo a oeste, amontoam-se no restaurante Dorgene e na cafeteria Lion’s Head; trabalhadores de frigoríficos e especialistas em comunicações lotam a lanchonete da padaria”.
“Quando volto para casa depois do trabalho, o balé está chegando ao auge. Chegou a hora dos patins e das pernas de pau e dos triciclos, das brincadeiras ao pé da escada com tampinhas de garrafa e caubóis de plástico; é hora dos pacotes e dos embrulhos; do ziguezaguear da farmácia para a banca de frutas e para o açougue”.
As ruas de Jaime Lerner
Nos livros de Jaime Lerner, entre eles “O que é ser urbanista (ou arquiteto de cidades)”, sobressai-se o seu fascínio por ruas de moradias e comércio aberto para as calçadas, com o trabalho e a escola nas vizinhanças de diferentes níveis de renda e de idade.
É a cidade que atrai turistas o ano inteiro. Qualquer cidade só consegue isso se for boa para seus moradores. “De todas as propostas do urbanismo contemporâneo e espacial, eu fico com a rua tradicional”.
“Sempre considerei este tema – a rua – o início do raciocínio sobre cidade, elemento básico. Em 1972, no segundo ano da minha primeira gestão como prefeito de Curitiba, decidimos fechar para automóveis um trecho central da Rua XV de Novembro, que passou a ser conhecida como Rua das Flores, a primeira rua para pedestres do Brasil.
Foi difícil convencer que aquilo seria bom para a cidade. Tivemos de fechar a rua em 72 horas, num fim de semana, para evitar protestos. Começamos a obra na noite de sexta-feira, e na segunda-feira à noite a rua estava fechada. Depois de alguns meses, todos pediram que eu aumentasse a extensão da rua para pedestres”.
“A cidade democrática é a cidade sem guetos. A democracia requer a mistura. É preciso exaltar a mistura, que traz benefícios colaterais até mesmo aos que estão no topo da pirâmide socioeconômica. Guetos são, por exemplo, os conjuntos habitacionais construídos nas periferias remotas. Ou os condomínios de luxo dentro das cidades”. “A melhor forma de segurança é conhecer seu vizinho. Em nossos projetos habitacionais, sempre optamos por permitir a mistura de moradores com diferentes níveis de renda. Um dos bens intangíveis de Curitiba é a vizinhança diversificada”. “O componente principal de uma cidade mais humana é a mistura. Mistura de funções, mistura de renda, mistura de idade etc. Quanto maior a mistura, mais qualidade de vida”.
“A sociedade é a cidade. E a cidade é a rua. Rua com integração de funções. A rua é minha obsessão. Cresci numa rua que era a porta de entrada e uma espécie de síntese de minha cidade, abrigando a estação ferroviária, a Assembleia dos Deputados, redações de jornais, emissoras de rádio, hotéis, comércio e um terreno vago, que era endereço certo para espetáculos circenses. Ali naquela rua fiz meu curso de fantasia e meu curso de realidade. Ali descobri muito cedo que a rua será sempre a síntese da cidade e de seus habitantes, porque é o cenário do encontro, em que o homem exercita o seu lado mais generoso e também onde manifesta suas angústias”.
“Os movimentos do urbanismo contemporâneo e as visões futurísticas não criaram nada melhor do que a rua. Rua que é a alma de cada bairro, o cenário perfeito para uma estrutura de vida e trabalho. O caminho por onde todas as cidades começaram poderá ser também a trilha do seu futuro”.
*Fonte: revista Bares & Restaurantes 125
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