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Umas das mais acentuadas mudanças observadas nos países democráticos do mundo inteiro é que as cúpulas já não ditam os rumos das sociedades do nosso tempo. Os analistas políticos, ainda presos à observação dos fatos pela via das altas esferas do poder, têm sido reiteradamente desmentidos por uma realidade que não conseguem captar, como ocorreu com o Brexit, a eleição de Donald do recém-criado partido En Marche! (Em Marcha!), de Emamanuel Macron.

Agora, no Brasil estamos diante de um resultado que nenhum jornalista e cientista político tinha minimamente previsto. Houve avassaladora renovação da Câmara dos Deputados e do Senado. Ao se observar o processo eleitoral brasileiro do século 21 “com as lentes do século 20” (conforme uma expressão criada por Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva), atribuiu-se grande importância ao acerto de cúpulas, nos moldes daquele que teria transformado Geraldo Alckmin em um forte presidenciável.

Ele articulou em torno de sua candidatura a coligação de oito partidos, encabeçada pelo PSDB, que juntos ocupam 44% das cadeiras da Câmara dos Deputados. A reboque dessa coligação, Alckmin conseguiu um tempo de televisão maior do que o da soma dos seus seis adversários: Fernando Haddad (PT), Ciro Gomes (PDT), Henrique Meirelles (MDB), Jair Bolsonaro (PSL), Álvaro Dias (Podemos) e Marina Silva (Rede).

Menos cúpula e mais alicerce. Esta é a mudança-chave da nova ordem mundial nos países em que as populações podem livremente se manifestar nas ruas e nas cabines de votação.

Os governos, partidos ou entidades de classe que continuam guiando-se pelos acertos de gabinete, sem uma estreita proximidade e um intenso diálogo com suas bases, estão inexoravelmente condenados ao lento, gradual e seguro autoextermínio.

O mais marcante exemplo brasileiro de sintonia com o século 21 se dá no campo religioso, especificamente nas denominações evangélicas, como aponta o sociólogo e ex-presidente Fernando Henrique Cardoso no seu recém-lançado livro "Crise e reinvenção da política no Brasil", editado pela Companhia das Letras. Escreveu ele:

- “Qual a diferença entre a Igreja Católica e as novas igrejas? A católica é hierarquizada, requer do religioso uma longa formação, enquanto as igrejas evangélicas fornecem a seus ministros quase uma carta patente, uma licença para abrir templos. Nascem e se expandem em grande quantidade, com inserção forte nas comunidades e êxito ao difundirem à gente desamparada o sentimento de pertencer a um coletivo”.

Quando o PT sofreu avassaladora derrota nas eleições municipais de São Paulo, em 2016, a Fundação Perseu Abramo, que é o braço acadêmico do partido, fez uma pesquisa qualitativa na periferia urbana, procurando saber o perfil e o pensamento de seus ex-eleitores. Descobriu que eles veem o Estado como “inimigo”, responsável por se apropriar do dinheiro dos impostos e fornecer serviços de baixa qualidade. Descobriu-se, então, que esses eleitores enaltecem o sucesso e o mérito pessoal, sem dar a mínima para conceitos como o da luta de classes.

Em relação ao enraizamento comunitário e à valorização do empreendedorismo pessoal e do lucro, como é da tradição do reformismo protestante de Martinho Lutero, as igrejas neopentecostais estão vendo o Brasil do século 21 com as lentes do século 21. Ou seja: com mais alicerce e muito menos cúpula.


Fonte: Revista Bares & Restaurantes, edição 123.

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