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Por Valério Fabris

Na eleição do site americano Planetizin, 1,5 milhão de internautas apontaram os 100 mais influentes urbanistas de todos os tempos

Em uma pesquisa internacional realizada pelo Planetizin, de Los Angeles, Jane Jacobs e Jaime Lerner foram nomeados como os dois mais influentes urbanistas de todos os tempos. O site é anualmente visitado por cerca de 1,5 milhão internautas que atuam nas diversas áreas profissionais relacionadas ao planejamento urbano.

No início de abril de 2018, foram divulgados os 100 indicados pelos eleitores. Por ordem decrescente, no pódio dos cinco primeiros colocados também incluem-se o americano Frederick Law Olmsted, o dinamarquês Jan Gehl, e o também americano Andrés Duany.

Ela, jornalista e ativista, escreveu o mais poderoso livro sobre planejamento urbano do mundo, lançado em 1961: “The Death and Life of Great American Cities”, que no Brasil foi publicado, no ano 2000, com o título “Morte e Vida de Grandes Cidades”. Seu nome de batismo: Jane Isabel Butzner. Casou-se em 1944 com o arquiteto americano Robert Hyde Jacobs Jr.

Ambos filhos de famílias protestantes. Nascida em Scranton, na Pensilvânia, mudou-se para Nova York em 1935, aos 19 anos de idade. Faleceu aos 89 anos, em Toronto, no Canadá.

Com a sua obra, reduziu-se o ímpeto global do planejamento urbano de cidades separadas por zonas específicas de moradia, trabalho, comércio, lazer e serviços públicos, conectadas entre si por sistemas rodoviários de viadutos, túneis e vias expressas.

A onda das cidades “funcionais”, segregadas por funções e desenhadas para a escala dos automóveis, redundou entre outros exemplos mundiais na construção de Brasília. Jane Jacobs mostrou aos urbanistas que as cidades formaram-se e desenvolveram-se livremente, ao longo da história.

A experimentação aproximava e mesclava as vizinhanças com moradia, trabalho, comércio, lazer e serviços públicos. O planejamento urbano, segundo ela, deve fortalecer e dar ordenamento a essa ancestral vocação agregadora dos núcleos urbanos, tanto nas funções (usos) quanto na diversidade socioeconômica, portanto no sentido contrário ao apregoado pelos formuladores das cidades monofuncionais e monoclassistas.

Ele, arquiteto e urbanista, colocou em prática princípios apregoados por Jane Jacobs em três mandatos como prefeito de Curitiba, como o da mescla de funções e de vizinhanças socioeconomicamente diversificadas.

Tornou-se, mundialmente, o prefeito que realizou o maior conjunto de ações voltadas à qualificação urbana, sobretudo nestas vertentes: transportes públicos, vias exclusivas para pedestre, separação de lixo reciclável, criação de bosques e parques.

Quando empossado pela primeira vez, em 1971, aos 34 anos de idade, havia na cidade um só parque, com área de 70 mil metros quadrados. Ao final de sua última gestão, em 1992, Curitiba dispunha de 31 parques, totalizando 19 milhões de metros quadrados. Com sua equipe, inventou e começou a implantar, em 1974, o sistema integrado do BRT (Bus Rapid Transit), adotado em 186 cidades no mundo.

Em 1990, conquistou o prêmio máximo do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente com o programa domiciliar de separação e coleta do lixo orgânico e reciclável, com coleta porta a porta. Em 17 de dezembro de 2018, Lerner completou 82 anos de idade.

Ele realiza projetos em cidades de vários países. Participa de seminários no Brasil e no exterior. No dia 14 de junho de 2018, encerrou o V Congresso de Arquitetura e Sociedade, em Pamplona, na Espanha, tendo analisado, com o urbanista dinamarquês Jan Gehl, o futuro da cidade sustentável na Europa e nas Américas.

Arquiteto Jaime Lerner, Paulo Solmucci e Pedro Hoffmann, respectivamente presidente executivo e conselheiro da Abrasel. Foto: Ignácio Costa

Os cinco primeiros entre os 100 mais influentes

Jane Jacobs – Nasceu em 4 de maio de 1916, na Pensilvânia. Faleceu em Toronto, no Canadá, no dia 25 de abril de 2006, portanto nove dias antes de ter completado 90 anos de idade. Mudou-se para Nova York em 1935, trabalhando como taquígrafa e repórter em publicações sindicais. Em 1952, tornou-se editora da revista “Architectural Forum”.

Entre 1955 e 1960, liderou o movimento contrário à construção de uma via expressa que passaria sobre o Greenwich Village. Em 1961, lançou nos Estados Unidos o livro “The Death and Life of Great American Cities” (que no Brasil ganhou o título de “Morte e Vida de Grandes Cidades”), publicado pela Randon House, Inc., com apoio financeiro da Rockefeller Foundation.

Tornou-se a obra literária que mais influenciou os arquitetos do mundo inteiro, a partir dos anos 1960, servindo como um forte contraponto ao urbanismo voltado ao uso intensivo dos automóveis e à separação dos bairros em áreas de usos específicos, consagrando a diversidade das calçadas, ruas e cidades, com comércio, vizinhanças residenciais e serviços públicos.

Mudou-se para Toronto, em 1968, recebendo a cidadania canadense. Liderou em Toronto campanhas contra a construção de viadutos e a destruição de prédios históricos na cidade.

Jaime Lerner – Nasceu em 4 de dezembro de 1937, em Curitiba. O registro de sua certidão, no entanto, foi feito 13 dias depois, constando a data de 17 dezembro. Filho de imigrantes poloneses, que chegaram ao Brasil em 1934. Os pais, Felix e Elza, abriram uma pequena loja nos fundos da casa, na Rua Barão do Rio Branco, no centro da capital paranaense. Formou-se em engenharia civil e arquitetura pela Universidade Federal do Paraná.

No período de um ano, entre 1962/63, estudou e estagiou em Paris. Frequentou o curso sobre Planejamento Urbano no Ministère de La Construction e estagiou no escritório de arquitetura, urbanismo e design Candilis, Josic & Woods. Presidiu o Instituto de Planejamento e Pesquisa de Curitiba (IPPU) em 1968/69.

Foi prefeito de Curitiba em três mandatos alternados e governador do Paraná em duas gestões consecutivas. Em 1990, recebeu prêmio do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente. Em 2002/2005, presidiu a União Internacional de Arquitetos (UIA), sediada em Paris, que congrega mais de 1,3 milhão de profissionais em todo o mundo.

Frederick Law Olmsted – Americano, nasceu em 26 de abril de 1822, na cidade de Hartford, estado de Connecticut. Faleceu em 28 de agosto de 1903, em Belmont, Massachusetts. Paisagista, concebeu e implantou o Central Park de Nova York, em setembro de 1857, com área de 341 hectares (duas vezes o parque paulistano do Ibirapuera).

Fazendeiro e jornalista, Olmsted criou cerca de 30 parques urbanos nos Estados Unidos, bem como outros 30 projetos de paisagismo de áreas universitárias, residenciais e ao redor de prédios oficiais. No Central Park, seu propósito era o de, como declarou, oferecer “recreação saudável para os pobres e ricos, jovens e idosos, os viciados e virtuosos”.

Jan Gehl – Nasceu em Copenhague, dia 17 de setembro de 1936. Arquiteto e ex-professor da Real Academia Dinamarquesa de Belas Artes. Autor de três livros, entre eles o “Cidade Para Pessoas” (editado no Brasil pela Perspectiva), uma das principais obras de referência do urbanismo contemporâneo.

Realizou projetos de desenvolvimento urbano em Copenhague, Moscou, Brighton (Inglaterra), Estocolmo, Roterdã (Holanda), Londres, nas cidades australianas de Melbourne e Sydney, e, nos Estados Unidos, em São Francisco, Seattle e Nova York.

As calçadas de Jane Jacobs

Com açougue, farmácia, cafeteria, banca de frutas, restaurantes e bares, entre eles o renomado White Horse, frequentado pelo poeta Dylan Thomas, a vizinhança do Village é narrada no livro Morte e Vida de Grandes Cidades. A cidade torna-se bela e aprazível quando nela a vida está em movimento, propiciando-se a coreografia do cotidiano balé nas calçadas.

"É preciso exaltar a mistura nas cidades, trazendo benefícios colaterais até mesmo aos que estão no topo da pirâmide socioeconômica. Guetos são, por exemplo, os conjuntos habitacionais construídos nas periferias remotas. Ou os condomínios de luxo dentro das cidades" - Jaime Lerner.

“É uma coisa que todos já sabem: uma rua movimentada consegue garantir a segurança; uma rua deserta, não”.

“O requisito básico da vigilância é um número substancial de estabelecimentos e outros locais públicos dispostos ao longo das calçadas do distrito; deve haver entre eles, sobretudo, estabelecimentos e espaços públicos que sejam utilizados de noite. Lojas, bares e restaurantes, os exemplos principais, atuam de forma bem variada e complexa para aumentar a segurança nas calçadas”.

“Sob a aparente desordem da cidade tradicional, existe, nos lugares em que ela funciona a contento, uma ordem surpreendente que garante a manutenção da segurança e da liberdade. É uma ordem complexa. Sua essência é a complexidade do uso das calçadas, que traz consigo uma sucessão permanente de olhos”.

“Temos muita sorte de existir em nossa rua um bar frequentado por moradores e outro, virando a esquina, além de um bar famoso que atrai uma freguesia constante dos bairros vizinhos e até fora da cidade. É ele famoso porque o poeta Dylan Thomas costuma frequentá-lo e o citou em sua obra. Esse bar, aliás, tem dois turnos distintos. De manhã e no começo da tarde é, como sempre foi, um ponto de encontro dos estivadores da antiga colônia irlandesa e de outros trabalhadores da região. Mas, a partir do meio da tarde, o bar ganha uma vida diferente, que faz lembrar uma mistura de bate-papo de universitários, regado a cerveja com coquetel literário, e isso até o começo da madrugada. Numa noite fria de inverno, quando se passa pelo White Horse e as portas se abrem, somos atingidos por um ambiente acolhedor. O entra e sai desse bar contribui em muito para manter a nossa rua razoavelmente movimentada até as três da manhã, e não há perigo em voltar tarde para casa”.

“Os estivadores que estão de folga reúnem-se no White Horse, no Ideal ou no International para beber e conversar. Os executivos e os comerciários das indústrias próximas, logo a oeste, amontoam-se no restaurante Dorgene e na cafeteria Lion’s Head; trabalhadores de frigoríficos e especialistas em comunicações lotam a lanchonete da padaria”.

“Quando volto para casa depois do trabalho, o balé está chegando ao auge. Chegou a hora dos patins e das pernas de pau e dos triciclos, das brincadeiras ao pé da escada com tampinhas de garrafa e caubóis de plástico; é hora dos pacotes e dos embrulhos; do ziguezaguear da farmácia para a banca de frutas e para o açougue”.

As ruas de Jaime Lerner

Nos livros de Jaime Lerner, entre eles “O que é ser urbanista (ou arquiteto de cidades)”, sobressai-se o seu fascínio por ruas de moradias e comércio aberto para as calçadas, com o trabalho e a escola nas vizinhanças de diferentes níveis de renda e de idade.

É a cidade que atrai turistas o ano inteiro. Qualquer cidade só consegue isso se for boa para seus moradores. “De todas as propostas do urbanismo contemporâneo e espacial, eu fico com a rua tradicional”.

“Sempre considerei este tema – a rua – o início do raciocínio sobre cidade, elemento básico. Em 1972, no segundo ano da minha primeira gestão como prefeito de Curitiba, decidimos fechar para automóveis um trecho central da Rua XV de Novembro, que passou a ser conhecida como Rua das Flores, a primeira rua para pedestres do Brasil. Foi difícil conhecer que aquilo seria bom para a cidade. Tivemos de fechar a rua em 72 horas, num fim de semana, para evitar protestos. Começamos a obra na noite de sexta-feira, e na segunda-feira à noite a rua estava fechada. Depois de alguns meses, todos pediram que eu aumentasse a extensão da rua para pedestres”.

“A cidade democrática é a cidade sem guetos. A democracia requer a mistura. É preciso exaltar a mistura, que traz benefícios colaterais até mesmo aos que estão no topo da pirâmide socioeconômica. Guetos são, por exemplo, os conjuntos habitacionais construídos nas periferias remotas. Ou os condomínios de luxo dentro das cidades”.

“A melhor forma de segurança é conhecer seu vizinho. Em nossos projetos habitacionais, sempre optamos por permitir a mistura de moradores com diferentes níveis de renda. Um dos bens intangíveis de Curitiba é a vizinhança diversificada”.

“O componente principal de uma cidade mais humana é a mistura. Mistura de funções, mistura de renda, mistura de idade etc. Quanto maior a mistura, mais qualidade de vida”.

“A sociedade é a cidade. E a cidade é a rua. Rua com integração de funções. A rua é minha obsessão. Cresci numa rua que era a porta de entrada e uma espécie de síntese de minha cidade, abrigando a estação ferroviária, a Assembleia dos Deputados, redações de jornais, emissoras de rádio, hotéis, comércio e um terreno vago, que era endereço certo para espetáculos circenses. Ali naquela rua fiz meu curso de fantasia e meu curso de realidade. Ali descobri muito cedo que a rua será sempre a síntese da cidade e de seus habitantes, porque é o cenário do encontro, em que o homem exercita o seu lado mais generoso e também onde manifesta suas angústias”.

“Os movimentos do urbanismo contemporâneo e as visões futurísticas não criaram nada melhor do que a rua. Rua que é a alma de cada bairro, o cenário perfeito para uma estrutura de vida e trabalho. O caminho por onde todas as cidades começaram poderá ser também a trilha do seu futuro”.

O cerzimento do tecido esgarçado

O livro de Jane Jacobs sacudiu, sobretudo, os arquitetos e urbanistas europeus, que se lançaram na missão de libertar as suas cidades da rodoviarização e da excessiva dependência do automóvel.

Arquiteto e urbanista cearense Fausto Nilo. Foto: Divulgação

Esse movimento fez renascer, principalmente na Europa, as cidades monocentrais. São elas, como define o arquiteto cearense Fausto Nilo, o cenário do compartilhamento, uma obra de muitos, viva e orgânica, com calçadas, ruas, praças e parques.

“Sem o compartilhamento, não há sustentabilidade”, diz ele. “A desagregação da teia das funções urbanas, em uma especialização das cidades em zonas, que, por sua vez, devem se conectar entre si por meio de um múltiplo sistema de vias, provoca altíssima dependência do automóvel. Jane Jacobs despertou os urbanistas para o seu lugar na gestão das cidades de hoje. Eles devem ser cerzidores desse tecido urbano esgarçado pela revolução industrial, e que ganhou ainda mais velocidade e poder de transformação com as novas tecnologias”.

"Os nós na mobilidade urbana não decorrem do tamanho da frota de automóveis, mas do uso que se faz dela, que não pode ser diário, apenas ocasional. Jane Jacobs escreveu: “Os automóveis costumam ser convenientemente rotulados de vilões e responsabilizados pelos males das cidades e pelos insucessos e pela inutilidade do planejamento urbano. Mas os efeitos nocivos dos automóveis são menos a causa do que um sintoma de nossa incompetência no desenvolvimento urbano"

Assim como Freud descobriu o inconsciente e Charles Darwin desvendou a origem das espécies, com o homem alargando o conhecimento sobre si mesmo, Jane Jacobs mostrou “a cidade como uma experiência acumulada ao longo da história das civilizações”, segundo a interpretação de Fausto Nilo. Historicamente, desde a Idade Antiga, as cidades foram sendo sinergicamente moldadas, relacionando entre si o lugar de morar, as ruas, o comércio, os teatros, os templos, a praça.

A ruptura começou a ocorrer no período compreendido entre as duas guerras mundiais, de 1918 a 1939, quando se acelerou a produção em série de automóveis, dando força aos que defendiam a viabilidade da desagregação urbana. O carro resolveria o problema das distâncias.

O livro de Jane Jacobs tornou evidente, no entanto, que a cidade deve ser viva e orgânica. A cidade dispersa provoca, como diz Fausto Nilo, além de um “custo energético absurdo”, os desequilíbrios culturais, ambientais, econômicos e sociais.

Lerner, o primeiro apoio ao Manifesto Abrasel

O manifesto da Abrasel, intitulado “A partir da rua, simplifica Brasil”, recebeu o apoio do arquiteto Jaime Lerner, em 29 de maio de 2015, logo que o documento foi divulgado. Ele então declarou:

“Assino-o com entusiasmo. O país está precisando de um movimento assim. É fundamental que esse movimento cresça, porque os bares e restaurantes dão vida e segurança às cidades. Que haja coexistência espontânea nas ruas, sem que o governo fique o tempo todo inventando padrões para os bares e restaurantes. O único padrão admissível é o de não obstruir as calçadas”.

Quatro anos antes, em julho de 2011, Lerner encontrou uma brecha em sua agenda de reuniões e viagens no país e no exterior para externar indignação a respeito de um episódio ocorrido em Curitiba.

A fiscalização da prefeitura estava impondo ao bar que ele frequenta, o Paraguassu, a retirada das mesas da calçada. Resolveu redigir um texto, que acabou sendo publicado na Revista Ideias, editada na capital paranaense.

“Foi-se o tempo em que a Prefeitura é que colocava as mesas na calçada para estimular os bares e restaurantes a promoverem o encontro. Em nome do curitibano cordial, deixem o bar Paraguassu em paz”.

No protesto, isentou o então prefeito Luciano Ducci (PSB) de ser o responsável pela retirada das mesas em frente ao Paraguassu. “Conheço o prefeito e sei que não é coisa dele. É homem sensível. A única explicação é algum representante de uma minoria ressentida e mal-humorada. Tem homenzinho solene no pedaço querendo exercer autoridade, para acabar com a alegria, a convivência e a tolerância. Nessa hora é que afloram as legislações absurdas, ou a má interpretação dos bem-intencionados”.

Cada bar ou cafeteria tem de ser preservado como ativador da vida urbana

As mesas permaneceram onde estavam, tendo sido demonstrado que não representavam obstáculo algum à livre circulação dos pedestres. Essa atitude do urbanista tinha diversos precedentes em Curitiba.

Em um deles, quando exercia o segundo mandato de prefeito, condicionou a instalação da loja Mesbla nos seis andares do edifício Heloísa Carneiro à manutenção do Café que há décadas funcionava na parte térrea do prédio, de portas abertas para a Rua XV de Novembro, conhecida como Rua das Flores.

Mas, de qualquer forma, como o edifício todo teria de passar por reformas, foi instalado um Café provisório, em um quiosque, no calçadão da Rua das Flores. Assim, não se desfez a tradicional roda de conversas naquele ponto da cidade.

Mas, quando as obras se concluíram, o Café voltou a funcionar no térreo do prédio. Porém, o Café do quiosque não foi desativado. No local, passaram a existir duas cafeterias.

Aquele ponto da rua ficou ainda mais animado. Este caso ilustra o grau de prioridade que Lerner atribui aos cafés, bares, restaurantes e bistrôs, como ativadores da vida urbana. É um pensamento que está em sintonia com os de Jane Jacobs, Jan Gehl e de tantos outros arquitetos que se alinham às ideias das cidades com escala humana.

A mobilidade segundo os dois mais influentes

Desde que pisou em Nova York, em 1935, deixando para trás a pequena cidade de Scranton, na Pensilvânia, Jane Jacobs foi jornalista e ativista em tempo integral, até à sua morte, em 2006, aos 89 anos de idade.

Difundiu a constatação de que uma cidade só é humana se nela houver a mescla social e a proximidade entre moradia, lojas de varejo, trabalho, lazer e serviços públicos.

Ao mesmo tempo, mobilizava pessoas de todas as classes sociais, colegas da imprensa, escritores e artistas para, por exemplo, criticar a construção de um novo conjunto habitacional em que havia espaços abertos sem possibilidade de uso e, ainda, uma larga separação entre as moradias e o comércio.

Conseguiu, depois de seis anos de uma campanha que agitou Nova York, entre 1955 e 1960, impedir a construção da via expressa suspensa, o Lower Manhattan Expressway (um “Minhocão” de imensas proporções), que, para ser erguido, deitaria abaixo o Washington Square Park e o todo o centro histórico da cidade-ilha, dizimando os bairros do Village, Soho, Little Italy e Lower East Side.

Seriam demolidos 416 edifícios, que abrigavam 2,2 mil famílias, 365 lojas de varejo e 480 outros estabelecimentos comerciais. A via expressa, que afinal não saiu do papel, contava com o apoio do Instituto Americano de Arquitetos e de vários grupos empresariais, sobretudo os da construção civil.

A questão do carro não está na posse, mas na forma como é usado

Os nós na mobilidade urbana – já dizia a jornalista e escritora há 60 anos não decorrem do tamanho da frota de automóveis, mas do uso que se faz dela, que não pode diário, apenas ocasional. A cidade do dia a dia das pessoas é a caminhável e a que dispõe de transportes públicos de qualidade.

Escreveu no livro Morte e Vida de Grandes Cidades: “Os automóveis costumam ser convenientemente rotulados de vilões e responsabilizados pelos males das cidades e pelos insucessos e pela inutilidade do planejamento urbano. Mas os efeitos nocivos dos automóveis são menos a causa do que um sintoma de nossa incompetência no desenvolvimento urbano”.

O que Jane Jacobs apontava como única solução para a mobilidade é a proximidade entre os usos urbanos, como os de moradia, trabalho e lazer. Jaime Lerner concorda dizendo: “a proximidade induz ao uso”.

Fora disso não há estrutura viária que resolva. O objetivo do urbanismo funcionalista, apregoado pelo arquiteto franco-suíço Le Corbusier, é o de segregar os usos, criando-se áreas específicas para cada uma das funções, que seriam acessadas com o uso intensivo do automóvel. Ele conclamava: “Precisamos matar a rua”.

O escritor e filósofo americano Marshall Berman (1940/2013), relata no seu livro “Tudo o que é sólido desmancha no ar” a febre funcionalista que se espalhou pelo mundo: “O dinheiro e a energia foram canalizados para as autoestradas e para o vasto sistema de parques industriais, shopping centers e cidades-dormitório que as rodovias estavam inaugurando. Ironicamente, então, no curto espaço de uma geração, a rua, que sempre servira à expressão da modernidade dinâmica e progressista, passava agora a simbolizar tudo o que havia de encardido, desordenado, apático, estagnado, gasto e obsoleto – tudo aquilo que o dinamismo e o progresso da modernidade deveriam deixar para trás”.

A mescla da vida em movimento

“A cidade é a maior invenção do homem”, diz Jaime Lerner. Ele repete em suas palestras que “a cidade não é um problema, mas uma solução”, cujo valor cresce ainda mais com o passar dos tempos, pois é ela “o último refúgio da solidariedade”.

O ser humano prefere o convívio urbano ao isolamento de uma solitária casa no campo. Juntas, as pessoas podem compartilhar ideias e distribuir tarefas entre si, apoiando-se mutuamente. Por isso, surgiram os núcleos urbanos. E também por isso a urbanização é cada vez maior.

As cidades mais caminháveis do mundo de hoje não são as que nasceram das pranchetas, já planejadas de uma vez só. Sedimentaram-se no curso de décadas e séculos, de tempos em tempos monitoradas por um planejamento urbano que acompanhou o seu desenvolvimento, em um processo que permite correções.

Há nas cidades um caráter ancestral. Até podem lembrar as tartarugas, que, metaforicamente, seriam um símbolo da vida urbana ideal.

Lerner diz que o desenho no casco da tartaruga é parecido com o da trama urbana, com uma estrutura de vida, trabalho e movimento. Ele utiliza-se desta imagem em suas palestras ou nos textos que redige em forma de contos ou crônicas, como os que resultaram no livro de sua autoria, intitulado “O vizinho – parente por parte de rua” (Editora Record).

No casco desses répteis o desenho em relevo assemelha-se à tessitura das funções de uma cidade em movimento, “o lugar de trabalho, o lugar de moradia, o lugar do lazer”.

E sintetiza: “A tartaruga é o melhor exemplo de vida e trabalho juntos”. No seu casco estão tracejadas as funções da cidade, uma próxima da outra: “O lugar do trabalho, o lugar da moradia, o lugar do lazer,enfim, um imenso abrigo”. Separar as funções estampadas no casco da tartaruga, significa matá-la. “É isso o que se está fazendo com a maioria das cidades”.

Desenho Jaime Lerner

Ele diz: “Uma das tragédias que tivemos nas cidades foi a separação das funções urbanas. Na verdade, essa visão da cidade retalhando as funções, como se as pessoas morassem num lugar, trabalhassem em outro, se divertissem ou se recreassem em outro lugar. Esta separação foi uma interpretação errônea da famosa da Carta de Atenas (manifesto do Congresso Internacional de Arquitetura Moderna, realizado na capital grega, em 1933) , um grande documento de arquitetura contemporânea, que nomeava as funções urbanas, mas não queria dizer que elas tivessem de ser necessariamente separadas”.

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