Em texto para o jornal Valor Econômico, Roberto Taufick* combate a verticalização bancária
Todos gostamos de inovações que reduzam preços. Até o recente avanço das tecnologias digitais, não havia nenhum ganho mais palpável para o consumidor médio que a elevação relativa da sua renda. Aos olhos das autoridades de defesa da concorrência, mesmo nos dias atuais, reduções de preço presumidamente elevam o bem-estar do consumidor e compensam elevadas concentrações de mercado.
Essa simplificação da realidade, tão cara aos economistas, é-nos bastante útil - mas, como toda simplificação, encontra limites na reprodução da realidade. Nos casos mais complexos, reduções de preços podem ser utilizadas como estratégias para reduzir a concorrência e, assim, permitir elevar preços no longo prazo, ou como mecanismos para disciplinar e formar, ou preservar cartéis
A discussão é relevante para compreender as implicações de inovação recentemente introduzida no segmento de credenciamento de cartões de crédito (as chamadas "maquininhas"): a segunda maior credenciadora do país zerou os juros em operações de antecipação de recebíveis de compras à vista no cartão de crédito para pequenos e microempresários correntistas do maior banco privado do país (ao qual é verticalmente integrada). Essa medida veio na esteira de estratégia semelhante adotada pela terceira maior credenciadora do país, a qual é, por sua vez, verticalmente integrada ao terceiro maior banco privado do país.
Em paralelo, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) deu início a investigações sobre a nova política de preços da segunda maior credenciadora do país quase imediatamente após o seu anúncio. As análises do BC e do Cade seguem o mesmo caminho: interpretam que as credenciadoras verticalizadas têm fortes incentivos para elevar os custos dos rivais e fechar mercado. Por isso, salta aos olhos a estratégia de reduzir preços direcionada para drenar um nicho de entrada de fintechs.
Apesar de contra-intuitivo, inovações podem viabilizar condutas unilaterais exclusionárias. Nesse caso, os benefícios da inovação - considerada predatória - para o autor da prática dependem, necessariamente, da exclusão dos concorrentes e não são compartilhados com o consumidor.
Para que a inovação introduzida no segmento de credenciamento faça sentido econômico e seja lícita, é necessário que a perda de receita pelo preço zero seja compensada pela captação de novos clientes pela própria credenciadora.
No presente caso, isso implicaria reconhecer o improvável: que as fintechs, apesar do seu modelo de custos diferenciado e mais competitivo, seriam incapazes de responder à competição por preços criada pela credenciadora inovadora. Rejeitada essa premissa, todos os competidores perdem dinheiro com a inovação no curto prazo e ela só passa a fazer sentido sob a perspectiva de que, no longo prazo, a concorrência será neutralizada pela formação de cartel, ou eliminada por meio de práticas predatórias - em qualquer caso, viabilizando praticar preços supracompetitivos no longo prazo.
Dada a verticalização, os preços predatórios podem ser financiados por subsídio cruzado indevido entre as atividades do banco e da credenciadora pertencentes ao mesmo grupo econômico. Apesar de os bancos serem companhias abertas e o subsídio não poder afetar a sua lucratividade sem que haja algum reflexo no mercado financeiro, o subsídio não precisaria ser necessariamente financiado pela elevação das tarifas bancárias, desde que fosse compensado pela absorção da base de clientes pequenos e médios empresários das fintechs.
O efeito exclusionário da inovação predatória poderia, ainda, advir do impacto cumulativo da perda de clientes com a queda do valor das ações das fintechs. Fala-se, aqui, de uma estratégia sofisticada: embora as mais destacadas fintechs do mercado de credenciamento sejam companhias listadas em bolsa e tenham sido afetadas por repentinas oscilações do seu valor de mercado após o anúncio da nova política de preços pela concorrência, as duas credenciadoras integradas têm capital fechado. Além de blindar as suas ações contra oscilações repentinas de preço, o fechamento do capital esconde a percepção do mercado quanto à solidez da estratégia comercial adotada e, por subsequente, provas de que sacrifique lucros. Felizmente, há um contrafactual: a maior credenciadora do país, sendo uma companhia aberta integrada a dois grandes bancos listados em bolsa, não tomou a mesma iniciativa - embora possivelmente tenha de se adaptar ao novo contexto.
A tudo isso se acresça a venda casada: a política de preço das duas credenciadoras só se estende a quem tenha conta nos bancos a cujos grupos pertençam, o que permite que bancos e credenciadoras com poder de mercado usem a sua dominância em um dos segmentos para alavancar o poder de mercado no outro. Ainda que não haja a obrigatoriedade de contratar a credenciadora para tornar-se correntista do banco (ou vice-versa), a oferta do pacote "banco+credenciadora = recebível a taxa zero" é incomparavelmente superior a qualquer opção de contratação separada.
Por fim, além de condutas unilaterais, a nova política de preços pode ser investigada como um convite à cartelização. Segundo a teoria da colusão, a imposição de perdas às fintechs pode sinalizar que as credenciadoras verticalizadas conseguem, com relativa facilidade, impor custos com os quais aquelas não podem lidar, exigindo cooperação como condição para não punir
Os benefícios em eliminar os custos de antecipação de recebíveis podem ser relevantes para reduzir custos de negócios em uma economia em recessão. É necessário entender, porém, em que medida a nova política de preços das credenciadoras verticalizadas não representa um mecanismo de proteção contra a competição das fintechs, que tem sido responsável por um salto qualitativo na entrega de serviços financeiros talhados de acordo com as necessidades do consumidor.
Seja como for, o caso demanda uma análise complexa cujo ônus probatório recai sobre investigadores em posição de informação incompleta - o que dificulta exponencialmente a punição de uma possível prática anticompetitiva. Como compensação, o investigador terá a seu favor um rico contexto de iniciativas recentes dos bancos postas em prática para fechar mercados para fintechs
* Roberto Taufick é mestre em direito pela Universidade de Stanford, John Olin Fellow em L&E pela mesma universidade e autor de Nova Lei Antitruste Brasileira.