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Por Paulo Solmucci, presidente-executivo da Abrasel

É preciso abrir as portas do Brasil para o amanhã. O primeiro passo é criarmos meios de estimular as pessoas a estabelecerem entre si conexões de crenças e valores, fomentando-se a cooperação comum. Isso significa ampliar o poder da sociedade, varrendo-se da nossa história o personalismo que há séculos mantém o país em intermitentes desgovernos.

Tornou-se lugar comum dizer que a pandemia escancarou as grandes fissuras e fragilidades do país, a começar pela sua extrema desigualdade social e econômica, o que é absolutamente verdadeiro.

Nesse exercício de autoanálise, provocado pelo mal-estar da pandemia, têm sido publicados artigos e mais artigos sobre os graves desacertos estruturais do país em praticamente todo o mosaico da vida nacional: da má qualidade da educação básica à exclusão digital, da defesa do meio ambiente à vigilância das fronteiras, do déficit habitacional ao caos na mobilidade urbana. De fato, a tragédia da pandemia expôs as muitas e muitas fraturas do Brasil.

Mas, parece que, nesse exercício de autodiagnóstico das acumuladas mazelas, tem escapado a identificação da mãe e do pai dos inúmeros males que a pandemia agora deixa a olhos vistos. Este mal de origem é o personalismo. Isso é sintomático. Parece que, de tão introjetado no caráter nacional, o personalismo se tornou imperceptível e, portanto, inidentificável.

O ponto chave é que uma sociedade conduzida sob a primazia do personalismo jamais será democrática. Só há democracia onde todos são iguais perante a lei.

O personalista não aceita isso. Ele é o coronel, o mandonista, portanto mais igual dos que os outros. Para os que não são da sua bolha de amigos e parentes quer distanciamento social. O seu bar não é o aberto a todas as pessoas; é particular. Os bares de portas abertas às calçadas quebram as hierarquias. Neles, os personalistas não são o rei do lugar, não são reverenciados por todos, como ocorre no seu gabinete, na sua fazenda, empresa ou repartição.

O personalista é descendente cultural do coronel do engenho, que montado em seu alazão, gritava ordens aos escravos. Esses coronéis consideravam e ainda consideram o trabalho manual como uma atividade inferior, até aviltante.

O dono de bar faz o mesmo trabalho de qualquer um dos seus funcionários. Limpa a mesa, carrega engradado de cerveja, dá as boas-vindas aos da família que acabou de chegar, perguntando-lhes onde querem se sentar. O bar é tudo o que um mandonista não é: comunitário, mesclado, diversificado, inclusivo.

Os personalistas chiques ou despojados são essencialmente da mesma cepa. O lugar deles é o exclusivo, o ‘personalité’, que corresponde ao seu perfil psicológico narcísico.

Ainda existe, sim, uma parcela da população que, condicionada pela cultura de cinco séculos de personalismo, acha que o sujeito mandão e que dá murro na mesa é o bom, pois “ele resolve”.

Desse jeito, um grande número de personalistas espalhou os alardeados protocolos da pandemia pelo Brasil afora, fechando bares, bistrôs, cafeterias e restaurantes, alardeando aos incautos a sua imensa coragem de travar uma demagógica luta contra ao covid-19, desagradando quem quer que seja, para o bem-estar de todos e felicidade geral da nação.

Armaram esse espetáculo nas mais visíveis áreas formais da cidade, ao fácil alcance das câmaras de televisão. E, assim, atingiam duramente todo tronco de negócios, que tem no bar a sua expressão historicamente mais popular.

Com essa trampolinagem do fictício combate ao vírus, deixavam de lado os ônibus abarrotados, os bailes funks, as festas clandestinas, as suas campanhas eleitorais que disseminaram a peste por todos os recantos do país, provocando, logo a seguir, o maior espalhamento das infecções e das mortes delas decorrentes, em um efeito em cadeia que ainda se desdobra nos surtos atuais.

Mas os bares e todo o setor da alimentação fora do lar não se entregam aos coronéis, continuando a sua missão de agregar e ampliar as comunidades, que são o solo fértil da mais florescente democracia.

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